segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Ao redor do cinema de Michel Ocelot

Quando o cineasta francês Michel Ocelot começou sua carreira, nos anos 70, nenhum estúdio queria trabalhar com ele. Hoje tudo que ele faz é desejado. Entre o anonimato e a notoriedade há uma história de persistência e de paradoxo.
Persistência porque ele queria ser reconhecido pelo seu trabalho e alcançou o sucesso internacional. Paradoxo porque atingiu um alto nível no cinema de animação praticamente sem recursos financeiros, o que é raro no gênero.
Muitas vezes Ocelot é perguntado sobre qual o seu estilo. "Meu estilo é a falta de dinheiro", costuma brincar o diretor, que esteve em Florianópolis em julho durante a 8ª Mostra de Cinema Infantil. É claro que depois do sucesso de Kirikou e a feiticeira (Kirikou et la sorcière), de 1998, o mundo descobriu o refinamento de sua animação e o diretor teve ao seu dispor todos os recursos para realizar uma produção com efeitos em 3D.
Experimentou alta tecnologia para produzir Azur e Asmar (Azur et Asmar), de 2006 - seu último longa -, mas gosta de frisar que alguns efeitos proporcionados pelo desenho animado clássico dificilmente são ultrapassados pelo computador. Ainda assim, a despeito dos recursos proporcionados pelas novas técnicas, o encanto narrativo do diretor francês tem outra gênese.
Vencedor de mais de 20 prêmios internacionais, o enlevo do cinema de Ocelot é a sutileza de sua animação. O diretor possui uma narrativa capaz de transformar uma história banal em obra-prima.
Talvez seja o desenvolvimento da linguagem como recurso primordial da arte que falta para algumas cinematografias alcançarem um nível maior de qualidade. É usual se atribuir a necessidade de muito dinheiro para se fazer um bom filme de animação em função da necessidade de uma grande equipe de produção e de tecnologia. Ocelot mostra que há outros caminhos.
Kirikou foi produzido por um núcleo principal inferior a dez profissionais, com recursos exíguos e realizado com mão de obra de desenhistas de cinco países, para diminuir custos. É necessário dizer que o diretor não considera esta a maneira ideal de se realizar um filme. No caso dele, viajou praticamente durante toda produção, e às vezes sem dominar as línguas locais. Além da França, Kirikou foi produzido na Bélgica, Luxemburgo, Hungria e Letônia.
O diretor não é contra os recursos da tecnologia, mas é importante também fazer uma referência ao curta A lenda do pobre corcunda (La légende du pauvre bossu), de 1983. Neste filme de Ocelot não há deslocamento de câmera, praticamente todo em preto e branco, sem movimento dos personagens, e sem diálogo verbal. Ganhou o César de Melhor Curta de Animação.
A história do pobre corcunda apaixonado por uma princesa foi contada por meio de uma sequência de desenhos elípticos, quase um storyboard filmado, em que o resultado é uma estrutura gramatical de efeito visual e sonoro.
O estilo "sem dinheiro" de Ocelot produziu outras obras-primas. Em 1980, com Os três inventores (Les trois inventeurs), seu curta de estréia, obteve o Bafta Filme Award, um prêmio de referência. Por onde vai palestrar sobre seu cinema, o diretor leva os originais dos personagens de Os três inventores em papel, feito com dobraduras e filigranas, que indicam a autoralidade de sua obra.
O curta inicial já dava sinais da estética do diretor que vai contra a intolerância embora toda sua cinematografia esteja longe de uma linguagem panfletária. Obra absolutamente autônoma, Os três inventores retrata uma família de inventores: pai, mãe e filho que trabalham pelo conforto da pessoas, mas são cruelmente perseguidos pela sociedade porque são diferentes.
O mesmo tema vai estar presente em quase toda sua cinematografia, que faz uma reflexão sobre o desentendimento entre homens e mulheres, jovens e velhos, cristãos e muçulmanos, pobres e ricos. É este caminho que ele vai explorar intensamente em Azur e Asmar, seu último filme, em tecnologia 3D. Gravado no estúdio dos Beatles, em Londres, com música de Hollywood, e todo feito no computador, Azur e Asmar é de um equilíbrio matemático impecável.
No filme, uma babá cuida de um jovem loiro e de olhos azuis junto com seu filho de mesma idade, mas moreno e de olhos negros. Os dois ouvem da mulher fábulas sobre uma fada, aprisionada por um feitiço. Ao crescer, ambos partem a sua procura. No curta, Ocelot surpreende ao apresentar um roteiro com uma inversão de valores em que o jovem que sofre o preconceito é justamente aquele de padrões europeus porque seus olhos azuis trariam má sorte.
Michel Ocelot nasceu na França em 1943, mas viveu na Guiné Francesa, na África, dos 6 aos 11 anos. Kirikou e a feiticeira é inspirado em um conto africano sobre a vida de um herói minúsculo.
O diretor faz antropofagia com as histórias que conta, comendo e reiventando as narrativas. No conto original, o herói mata a feiticeira que ameaça a tribo, mas na recriação do cineasta a vida da malvada Karaba é preservada. O Kirikou de Ocelot tem um perfil perguntador e é comparado pelo próprio diretor ao do pensador francês Voltaire.
"Antes de Kirikou muita gente achava que só os americanos sabiam fazer animação. Hoje todas as crianças conhecem Kirikou, um personagem que não tem poder nenhum, pequeno, nu, mas generoso, austucioso, e rápido", diz ele. A sedução do herói é justamente o seu tamanho, sua agilidade, caráter e personalidade.
O filme estreou na França, sem publicidade, com 60 cópias, simultaneamente com O príncipe do egito, produção norte-americana com 660 cópias. Kirikou teve as sessões lotadas ao ser exibido em rede de cinemas de arte, em salas municipais e com o apoio do governo.
Após o primeiro longa, veio ainda Príncipes e Princesas (Princes et princesses), de 2000, com utilização do teatro de sombras feito com silhuetas de papel, e Kirikou e os animais selvagens (Kirikou et les bêtes sauvages), de 2005.
Depois de Azur e Asmar, Ocelot teve propostas para fazer um novo longa, mas está produzindo 10 curtas para a televisão e cinema. Vai seguir com seu poder de criar e oferecer beleza, expressando sentimento e criando imagens, com uma linguagem capaz de nos afastar do moralismo que vigora nos desenhos animados atuais.
(Este texto foi publicado no número 69 do jornal Ô Catarina, lançado este mês. A foto é de Cleide de Oliveira. Convivi com Ocelot por três dias durante a Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis de 2009. Agradeço imensamente às diretoras Luiza Lins e a Kátia Klock pela oportunidade de ter tido um contato tão próximo com "Ocelô", um sujeito de uma simpatia, simplicidade e inteligência irretocáveis).

Um comentário:

  1. Adoro este cineasta françês dos filmes que eu vi dele que mais gostei foi o Les 3 Inventeurs de 1980 se não me engano.

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