Já conheço o cinema de Pedro MC pelos filmes Paisagem Urbana e Maciço. Gosto especialmente de Paisagem Urbana pela câmera movediça, inconstante, que se detém em tom de memória pelos prédios e ruas do centro de Florianópolis como um território afetivo.
Agora o diretor está com um novo filme, o doc Entrelinhas, realizado em parceria com a artista plástica Letícia Cardoso. Premiado pelo edital de produção do Funcine, a proposta da narrativa do curta é o diálogo da equipe de produção com o imaginário de pacientes internados no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico da Penitenciária de Florianópolis.
Com montagem de Yannet Briggiler, o doc estreou na Fundação Badesc na noite de sexta-feira. Pedro e Letícia seguem um itinerário absolutamente aleatório. São os pacientes que falam, que buscam a câmera, como uma maneira de suprir sua necessidade de atenção e de interpretar o seu próprio personagem.
O resultado é um filme bem editado, que tem fluidez, mas que não assenta uma configuração dos personagens. Um dos caminhos da narrativa, usado à exaustão, é o recorte da tela em três quadros. O recurso não chega a incomodar, mas ao invés de oferecer uma amplitude de leituras, exibe um discurso prosaico.
E se citei o filme anterior de Pedro é justamente como uma forma de contrapor, porque em Paisagem Urbana a câmera estabelece uma narrativa poética e provocativa. Entrelinhas, ao contrário, é uma narrativa trivial sobre pacientes que vivem em um manicômio judiciário. O que fica do documentário é o depoimento engraçado da maioria dos personagens. Um dos internos fala de um Deus loiro e solteiro.
O conjunto de relatos felizes é quebrado por um deles, que diz ter abolido o uso do relógio. Reflete que, afinal, a marcação das horas não tem sentido para quem não tem liberdade de escolher aonde ir. Notadamente, a matéria do documentário não é a falta de liberdade, mas poderia ser.
Embora Letícia e Pedro tenham usado como dispositivo de filmagem o conceito freudiano de "atenção flutuante", que consiste numa escuta sem preocupação imediata com o que poderá ser retido da conversa, o filme não é dos entrevistados, mas dos diretores.
Filmado sob a luz do dia, em um ambiente de claridade absoluta, sem a oposição da sombra, Entrelinhas não exibe conflito, e quase nenhum contraste. A dicotomia entre encarceramento e liberdade até surge, mas no desfecho do doc, quando um dos internos opera uma das câmeras da equipe e capta imagens externas do hospital psiquiátrico. É o momento mais intenso.
Mas já estamos próximos do final e surge um plano de detalhe de um walk tok, seguido por imagens em silêncio, como uma interrogação sobre a vida reclusa. É um clichê, no entanto é neste momento derradeiro que é possível enxergar cinema no doc de Pedro e Letícia, justamente quando a narrativa é sem palavras. É aí que se pode enveredar sobre a incompletude e o disparate da vida. É provável que somente no remate esteja a essência do documentário Entrelinhas.
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