segunda-feira, 14 de março de 2011

João Batista em entrevista ao Cine Luz

Homenageado em 2008 no 5º Catarina Festival de Documentário, realizado na em Itajaí, o cineasta João Batista de Andrade reviu no festival pela terceira vez a cópia restaurada do célebre O Homem que Virou Suco, possivelmente seu filme mais emblemático, que será exibido nesta terça, às 20h, no Cine Pitangueira, no Casarão da Lagoa, em Florianópolis. Na época, João Batista concedeu esta entrevista - que estava perdida - ao Cine Luz.
Realizado em 1979, na época da abertura política, O Homem que Virou Suco disputava no final dos anos 70 espaço com os títulos da pornochanda. Desprezado pelo público, fez uma bilheteria irrisória, até que foi selecionado e ganhou o prêmio principal, de Melhor Filme, no Festival Internacional de Moscou, em 1981. Além do troféu recebido na ex-União Soviética, foi premiado em outros festivais brasileiros e internacionais e virou uma febre nas salas de cinema e nos circuitos dos cineclubes.
Doutor em Comunicações pela Universidade de São Paulo e ex-secretário de Cultura do Estado de São Paulo, João Batista filmou ainda Greve, Paulicéia Fantástica, O País dos Tenentes, Doramundo e Rua Seis Sem Número, que representou o Brasil no Festival de Berlim em 2003. Escreveu, entre outros livros, o romance Um Olé em Deus (1997). Na imagem do post, João Batista de Andrade no Mercado Público de Itajaí em foto feita pelo blogueiro.

Cine Luz: Quantas vezes você já viu O Homem que Virou Suco?

João: Depois que o filme foi restaurado, acho que é a terceira vez que eu assisto até o final. Até por curiosidade pessoal e para saber o que é que do filme ficou, e também para ficar pensando como é que eu fiz a cena. Cada cena que entrava eu ficava lembrando, como é que aconteceu, como é que eu dirigia. É um exercício meio pessoal, até para me compreender melhor. Eu sou uma pessoa muito racional, um intelectual com muita racionalidade, e com uma visão muito política e o meu cinema tem um lado que eu não controlo, um lado quase que inconsciente, uma coisa que foge da racionalidade.

Cine Luz: E O Homem que Virou Suco tem muito desse aspecto irracional, não é?

João: Todos os meus filmes são muito estranhos à minha postura, à minha visão. Então eu sempre procuro nos meus filmes onde está o domínio desta loucura pessoal. E neste filme é uma coisa impressionante porque o filme é de um anarquismo, de uma irreverência muito grande, saindo de uma pessoa tão politizada, tão racional, e tão não-anarquista como eu. Pra ver como a política e o cinema caminham em lados diferentes da minha vida, quer dizer, um não se submente ao outro. Quando eu faço cinema acho que liberto alguma coisa incontrolável, e quando eu faço política, aí o controle da razão é muito grande. Eu tenho uma atuação política forte por causa desta racionalidade, que não ocorre no cinema.

Cine Luz: O filme foi recém restaurado e foi recentemente exibido no 12º Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM) . O que você achou da restauração feita pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro patrocinada pela Petrobrás?

João: Eu gostei muito. O filme tem alguns problemas de imagem. Não de fotografia, a fotografia do Aloysio Raulino é linda, mas problemas de imagem porque o longa foi mal ampliado na época e com um azar, porque além de ser mal ampliado, o laboratório danificou os originais em 16mm. Então você tinha que trabalhar com aquela ampliação em 35mm. Então a restauração conseguiu fazer voltar, mais ou menos, ao que era o 16mm. Isso que é interessante. Então eu acho que o filme voltou a ter um clima que era o clima original. Mas foi um filme de muito poucos recursos, por isso foi filmado em 16mm e foi feito de uma forma documental. O modo de filmar é documental, mas é absolutamente ficcional, o roteiro todo saiu da minha cabeça, os personagens falam o que está no roteiro. As pessoas acham que, às vezes, é uma improvisação sem parar. Não é tanto. A improvisação é mais do José Dumont e improvisação do jeito de filmar. Mas, o texto, as situações foram toda escritas por mim. O José Dumont fala as coisas que eu tinha escrito. A equipe reduzida, uma câmera na mão

Cine Luz: A câmara na mão o tempo todo? Não foi usado o tripé?

João: Em algum ou outro momento, mas raramente.

Cine Luz: A fotografia granulada da cópia restaurada é a mesma da cópia original que foi exibida nos cinemas.

João: Granulada porque é 16mm. É um filme com uma fotografia que, na verdade, tenta se submeter ao ambiente. É como se fosse uma fotografia natural. E eu gostava muito de filme granulado. Mas o filme tenta não criar coisas artificiais demais nos ambientes e tem um grau de liberdade que eu impus. Eu filmei em tudo que é lugar que eu quis. Por exemplo, a festa inicial, do operário símbolo, é a festa do operário padrão da Globo com a Fiesp. Quem tava na mesa é o presidente da Fiesp, eu coloquei os atores na festa.

Cine Luz: Você pediu autorização para fazer o filme lá?

João: Pedi autorização para fazer o filme sem contar que depois o operário esfaqueia o patrão. Filmei tudo e na hora do patrão e do empregado se encontrarem eu falei para o Zé Dumont botar a mão para trás, como se fosse puxar a faca e fiz o corte. Depois eu esperei acabar a festa, esperei todo mundo sair aí eu disse que precisava filmar um detalhe. E o detalhe era o assassinato do patrão. Filmei também debaixo do viaduto. Aliás, na festa, as pessoas todas eram da festa real. Debaixo do viaduto, todos eram mendigos, inclusive o que encena, o que chama o Zé Dumont e dá o cobertor pra ele. No metrô são os operários do metrô, no prédio em construção os operários do prédio.

Cine Luz: E como foi o encontro com o José Dumont? É a partir do filme que ele começa a aparecer no cinema brasileiro?

João: Ele tinha feito umas pontas, uns papéis pequenos em alguns filmes, mas é o primeiro filme em que ele é protagonista. Acho que eu posso dizer que O Homem que Virou Suco é o filme fundamental da carreira dele. Não é à-toa que, agora, na homenagem ao Zé, o título é O Homem que Virou Cinema. Porque ele faz um persongem do fígado, é a questão do nordestino, do homem subalterno, que tenta se afirmar, lutar contra esta subalternidade para ser cidadão, para ser respeitado. Então aquilo é uma carga de nordestinidade, uma carga de questão popular impressionante. E o José Dumont encarnou aquilo, que era a vida dele. Não é a história do Deraldo e do Severino do filme que é a vida dele, mas a vida dele é também aquilo, a pessoa que nasce lá no Nordeste e enfrenta os preconceitos todos para se afirmar, para ser gente, para ser respeitado e ele encarnou aquilo como se fosse a história dele.

Cine Luz: O filme não foi bem no lançamento.

João: Na época de lançar houve uma curiosidade. O filme foi lançado no final de 1980 e não foi bem. Na época, eu ficava na porta do cinema e via as pessoas olhando os cartazes e era a época da pornochanchada. As pessoas olhavam, olhavam, comentavam, achavam estranho aquelas fotos, diferente, nada a ver com a pornochanchada, mas poucos iam ver o filme. Ficava "assim" de gente olhando, comentavam, ficavam na maior dúvida , mas não iam ver o filme. Não entendiam o que que era aquilo, que tipo de cinema era aquele que estava sendo ofertado. Bom, aí veio uma comissão do Cinema Soviético e eles viram todos os filmes do ano e foram embora. E, de repente, vem uma carta convidando O Homem que Virou Suco para a competição. A Embrafilme ficou furiosa. A Embrafilme era contra o filme, porque o filme era pobre e falava de miséria.

Cine Luz: Mas eles eram patrocinadores do longa.

João: Sim, eles patrocinavam o filme. Mas a Embrafilme tentou mudar a seleção e os soviéticos não permitiram. Aí o filme foi para lá. Eu não fui. A Assunção Hernandez, produtora, que na época era minha mulher, foi. Depois, eu tô em casa, de madrugada, começa a tocar o telefone falando em umas línguas diferentes. E eu fiquei bravo. Achava que era brincadeira. Aí tocava o telefone de novo. Era uma loucura. Era um festival que competia com Cannes na coexistência pacífica. E não era um festival só socialista, porque tinha filme americano, e tinha filme francês, japonês, italiano. Havia 100 filmes. E o filme ganhou por unanimidade e a repercussão foi uma coisa impressionante. Chegou uma hora que não agüentava mais falar deste filme. Não houve um programa de rádio e de televisão em São Paulo que ficou sem fazer entrevista comigo. E aí chegou o troféu e eu voltava aos programas para levar o troféu que era muito bonito, de vários tipos de mármore.

Cine Luz: Aí o filme voltou ao circuito comercial.

João: Sim, nos mesmo lugares onde já havia sendo exibido.

Cine Luz: Você sabe qual foi a bilheteria?

João: Não faço a menor idéia.

Cine Luz: E entrou também no circuito universitário

João: Daí ocorreu o seguinte. O pessoal do cineclube tinha começado a fazer um trabalho com os meus filmes na época do cinema de rua, no começo dos anos 70, que eram pequenos documentários sobre questões sociais, que eram feitos para ajudar os grupos da sociedade que, debaixo da ditadura, começavam a se rearticular discutindo problemas reais, de água, esgoto, da escola, condução. A gente fazia filmizinhos sobre estas questões para eles exibirem nas reuniões. Era uma luta contra a ditadura, uma rearticulação da sociedade. Os filmes faziam um sucesso tremendo. E o movimento cineclubista tava com uma distribuidora e assumiu esses filmes e distribuiram. Depois eu fiz o Greve, em 1979, e foi um sucesso tremendo. Não passava na televisão porque a ditadura não permitia, então eu fiz o filme para que levasse a imagem da greve para o mundo inteiro. Era uma loucura a procura por estes filmes. Havia filas onde os filmes eram exibidos em várias sessões por dia. Quando o filme voltou eles propuseram exibir no circuto de 16 mm. Aí nos começamos a fazer cópias em 16mm e não havia cópia que chegasse. Era exibido em todo lado, em toda biboca, igrejinha de favela, sociedade amigos do bairro, grupo de mães, conventos, sindicatos, pelo Brasil inteiro, era uma febre. Além de ir bem no circuito comercial, teve essa coisa, que não dava para calcular e foi o que estragou o filme porque tirava cópias demais e não tinha cópia master.

Cine Luz: Geralmente quando um diretor revê o seu filme, ele pensa em fazer algum ajuste. Com O Homem que Virou Suco ocorreu este desejo?

João: Eu não sei. Depende do dia. Às vezes eu acho uma coisa, às vezes eu acho outra. Mas eu tento adotar uma postura de respeito à história do filme e não ficar questionando. Eu acho que não existiria outro filme. Isso é uma metafísica. O filme que existe é aquele. E ele ganhou esta legitimidade por ele mesmo, na vida cultural e social da maneira que ele é. Eu sou um pouco crítico com relação a críticos de cinema: às vezes existe uma arrogância. Muitas vezes vai ser exibido, por exemplo, um filme como Dez Dias que Abalaram o Mundo, aí o crítico dá três estrelas na chamada do filme. E eu já vi muito disso. Mas há filmes que não há mais o que se discutir. Foram feitos, já aconteceram. Não que eu queira comparar O Homem que Virou Suco com os Dez Dias, mas que julgamento você pode fazer sobre esses filmes, sobre O Bandido da Luz Vermelha, Macunaíma, Terra em Transe, então põe lá logo cinco estrelas de uma vez, e acabou. São filmes que se legitimaram e estão acima de julgamento. Com o meu filme eu ttenho este respeito

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